domingo, 31 de janeiro de 2010

Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
Amar e esquecer,
amar e mal amar,
amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
Amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração espectante,
e amar o inóspito¹, o áspero
um vaso sem flor, um chão vazio,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina

Este o nosso destino, amar sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas² ou nulas
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor

Amar a nossa falta mesmo de amor, e na secura nossa amar a água implícita, e o beijo tácito³, e a sede infinita.


ANDRADE, Carlos Drummond de



¹De acesso difícil
²Falsas
³Subentendido

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